Todo dia era assim. Antes que o sol batesse à janela, Carlos
Alberto estava de pé. Às 5h30, já tinha tomado banho, escovado os dentes e
afiado a língua; afinal de contas sua jornada começava cedo e cada minuto precisava
ser produtivo. Como de costume, o empresário, dono de um grande jornal, acordava
a casa com seus berros.
Ora queria saber onde estava a roupa do dia, embora estivesse
sempre ali: passada e pronta para o uso na porta do meio de seu guarda-roupas:
um móvel rústico talhado em madeira de lei. Noutro momento cobrava da mulher as
chaves do carro que, como de costume, a cada dia amanheciam em lugar diferente por
causa da sua desorganização.
Ninguém entendia o porquê de tanto estresse. Nem havia
completado cinquenta anos e já vivia uma realidade bem diferente da maioria dos
colegas de infância. Nascido em uma comunidade pobre da baixada fluminense, no
Rio de Janeiro, o empresário de alta estatura, cabelos grisalhos e porte
atlético, circulava pela cidade num carrão de luxo importado. Usava roupas de
grife e mantinha na gaveta perfumes caros; daqueles que só homens de negócio
costumam usar.
Sua cobertura, um duplex de frente pro mar da zona oeste,
chamava a atenção de quem passeava pela orla; nem de longe lembrava a casinha sem
reboco onde ele e o irmão Antônio cresceram.
A Gazeta Fluminense, que comandava com pulso forte, estava
entre as mais bem-sucedidas empresas de comunicação do Estado e vivia dias bem
diferentes daqueles quando Carlos Alberto, ainda recém-formado no ensino médio foi
transformado em executivo de vendas do jornal.
A infância
Carlos Alberto Dantas nasceu no dia 21 de junho de 1970, em
Nova Iguaçu, no Rio, duas horas depois do Brasil vencer a Itália por 4 x 1 e
conquistar sua terceira copa do Mundo, no México. Mesmo dia em que os pais completavam três anos
de casados. Seu nome foi uma homenagem ao eterno capitão Carlos Alberto Torres.
Filho de Francisco Dantas, um lavrador criado no cabo da
enxada no sertão de Pernambuco, e de Joana, diarista, o menino sempre soube que
só com trabalho um homem pode ganhar a vida. O pai acordava cedo todos os dias.
Às quatro da manhã, estava de pé preparando o cafezinho que vendia no trem a
caminho do trabalho. Era jardineiro na casa dos Lacerda desde 1960, quando
chegou no Rio de Janeiro fugindo da seca do nordeste. Nem nos dias de folga o
homem descansava: quando não estava na capina podia ser visto lavando carros ou
vendendo picolés pela rua. Uma rotina quebrada no dia treze de maio de 1983.
Carlos e o pai estavam em casa quando o telefone tocou. Era
Juvenal Lacerda, o patrão, que sem meias palavras foi logo informando da morte
de Antônio.
- Francisco, aqui é o Juvenal.
- Boa tarde doutor. Olha, eu num
fui trabalhar porque...
O Caxias que pela primeira vez havia faltado o trabalho foi
logo interrompido:
- Escuta, homem, sobre isso a
gente fala depois. O negócio é o seguinte: Toninho morreu.
- O quê?, perguntou Francisco sem acreditar.
- Ele estava limpando o jardim e
meteu a enxada no fio do refletor. Ai já viu, né? Tomou um choque de 220 volts
e não resistiu.
Antes que o patrão terminasse a conversa, seu Francisco
sentiu uma pontada no peito e caiu. Desesperado, o filho de apenas treze anos
de idade só conseguia gritar: acorda papai, acorda! Foram os dez minutos mais
longos de sua vida. O menino chorava, pedia socorro, mas ninguém ouvia. Dona Joana que voltava de mais uma faxina escutou os gritos
ainda do portão. Assustada, entrou correndo e encontrou o filho em estado de
choque. Voltou pra rua, pediu ajuda, mas era tarde demais: o marido estava
morto. Num instante de lucidez decidiu ligar para o patrão dele e pedir
socorro. Foi exatamente quando Juvenal chegou. Como tinha achado estranho o
silêncio do empregado ao telefone decidiu vir e contar do ocorrido pessoalmente.
Chegando foi surpreendido pelo destino: agora, além de informar o desencarne de
Antônio precisava consolar a mãe e o caçula pelas duas perdas.
Na manhã seguinte, pai e filho foram enterrados.
O baque foi tão forte que mudou pra sempre a vida da família.
Carlos Alberto que sempre foi um doce com a mãe se fechou. Passava a maior
parte do dia na escola e em casa ficava trancando no quarto: não queria ver
ninguém. Foram dias de silêncio até que conheceu Maria, a primeira namorada. Uma
morena bonita, de cabelos longos e negros, que chamavam a atenção. Tinha 15
anos, morava no mesmo bairro e frequentava a mesma escola. Três anos de namoro
até que decidiram deixar a casa dos pais, sem se pedir permissão, e fugiram pra
viver juntos.
Conquistando a vida
O jovem que nunca tinha pegado no batente agora precisava
arrumar trabalho. Com o diploma de técnico em administração chancelado pela
Escola Municipal Monteiro Lobato, uma das mais respeitadas da baixada, foi até
a Gazeta Fluminense falar com o velho Juvenal, ex-patrão do pai. Ele era o dono
do jornal fundado na década de trinta e que já tivera em seus quadros jornalistas
ilustres como Machado de Assis e Rui Barbosa.
O momento não era bom. A empresa estava atolada em dívidas, tinha
reduzido em 50% o número de trabalhadores e remanejado os últimos dez
funcionários para manter o jornal circulando. Mesmo assim, surgiu uma proposta desafiadora:
ao invés de salário mensal o jovem trabalharia como executivo de vendas
ganhando 20% sobre a venda dos jornais e nada além. O ano era 1998 e o diário
mais tradicional de Nova Iguaçu precisava de um novo gás.
Naquela época, conseguir anunciantes era como encontrar uma
agulha no palheiro. A internet ganhava força, atraia cada vez mais leitores e
tirava dos impressos a verba publicitária. Jornais como o JB, um dos primeiros e
mais respeitados, já migravam para versão on-line. Mas a Gazeta teimava em
resistir.
Sem pestanejar o garoto aceitou a proposta. Tinha aprendido
com o pai que só com trabalho se vence e que um homem não pode ter medo dos
desafios que vida lhe impõe. Impôs apenas uma condição: a estratégia de vendas
seria de sua total responsabilidade e ele não aceitaria interferências da
chefia. Negócio fechado!
No dia seguinte, às sete da manhã, o novo executivo estava
na Gazeta. Procurou o patrão e apresentou suas armas; estava disposto a adaptar
promoções do comércio local pra vender propagandas. Faria assim: os antigos anunciantes
que quisessem manter suas propagandas ganhariam de brinde um segundo anúncio,
do mesmo tamanho do contratado, em outra página do jornal. Chamou a promoção de
Dobradinha, do tipo pague um e leve dois.
Ora, se anúncio tem o objetivo atrair o maior número de consumidores,
com mais exibições maiores as chances de convencê-los!
Para atrair novos clientes a estratégia seria diferente:
consultoria especializada. Pra reduzir os custos do anunciante a própria equipe
da Gazeta elaboraria sua propaganda e o ajudaria a escolher a melhor página
para veiculação de acordo com o público alvo, evitando pra eles gastos com uma
agência especializada. Além disso, o cliente ganharia uma publicação grátis a
cada duas negociadas. Se contratasse quatro dias de publicação, por exemplo,
teria sua mídia veiculada de segunda a sábado, seis vezes. Caso quisesse
anunciar também no domingo ganharia desconto de 5% no preço total nos contratos
de no mínimo três meses.
Mas pra tudo funcionar direitinho, a empresa precisava
garantir que o jornal chegasse sem atraso às mãos do leitor, afinal de contas o
impresso circulava nos 13 municípios da baixada fluminense, uma área enorme pra
ser coberta. Pra evitar problemas, o novo executivo que tinha passado a noite
estudando tudo sobre distribuição de jornais já tinha um plano.
Nos bairros com maior número de assinantes a entrega
passaria a ser feita até às seis da manhã garantindo que o leitor recebesse o
jornal antes de sair de casa e começasse o dia bem informado. Nas demais áreas,
incluindo as regiões de comércio, os exemplares estariam nas bancas até às 7h. Assim,
a caminho do trabalho qualquer pessoa poderia comprar a Gazeta Fluminense e
ficar por dentro das novidades do dia.
A empresa faria um acordo com os donos das bancas para que seus
exemplares fossem estrategicamente pendurados na parte externa das bancas deixando
suas principais manchetes às vistas do público: capa boa atrai curiosos que
compram o jornal. De ouvidos sempre atentos, o novo estrategista tinha escutado
esta frase no dia anterior quando passava pela redação durante uma reunião de
pauta. E cá pra nós, visibilidade, neste ramo, é alma do negócio!
Quando acabaram as explicações, o velho Juvenal se deu conta
de que tinha acertado em cheio na contratação. O rapaz tinha jeito pra coisa;
parecia até ter nascido em uma família de comerciantes e não de um jardineiro
com uma doméstica. Seus filhos que estudaram nas melhores escolas e cresceram
dentro da empresa nunca apresentaram uma estratégia pra garantir vivo o negócio
que iriam herdar.
A grande virada
Foram dois anos de muito trabalho, mas no final tudo deu certo.
As vendas triplicaram e a Gazeta Fluminense voltou a ser o maior jornal da
baixada fluminense. Com a conta bancária em alta, no dia 7 de setembro de 2000,
Carlos Alberto Dantas deu o grito de independência: chamou o patrão e o
convenceu a pendurar as chuteiras aos 85 anos de idade. Por cerca de R$ 300 mil
lhe comprou o diário e se tornou o mais novo magnata da comunicação.
Com o nome consolidado e de olho no mercado virtual a Gazeta
ganhou sua versão on-line. Um site moderno, de visual arrojado, com notícias
dinâmicas, correspondentes no exterior, fotografias em alta definição, blogs
dos principais colunistas do Estado e uma WebTV. O sistema de buscas permitia acesso
a todos os jornais desde a primeira edição impressa. Em pouco tempo, o GF.com
passou a ser o portal de notícias mais visitado do Rio e, de quebra, o de
melhor resultado financeiro. De pobre menino da Baixada, o agora Dr. Carlos
Alberto era o mais respeitado empresário das comunicações no Rio de Janeiro.
Vida nova, hábitos novos e a arrogância peculiar àqueles que
tudo têm às mãos. Com dinheiro no bolso vieram os bens materiais e a mudança de
personalidade. O jovem que adorava os amigos, tinha ideais trabalhistas e queria
um mundo mais justo e igualitário, agora só pensava no lucro. Entrava e saia da
empresa sem dar bom dia: relacionamento amigável só com funcionários do alto
escalão e grandes clientes.
Em casa, a rotina também mudou. O bate-papo com a mulher, o
filminho em família, as brincadeiras com os filhos não aconteciam mais: o poderoso
chefão não tinha tempo pra conversas fiadas. Toda vez que Junior pedia ao pai
pra jogar com ele uma partida de vídeo game, por exemplo, a desculpa era sempre
o cansaço. Afinal de contas, no dia seguinte o homem de negócios tinha que
multiplicar a fortuna pra garantir o conforto de todos! Levantar cedo, acordar
as crianças e tomar café com eles, quando tinha tempo, eram os carinhos que lhe
bastavam. A paixão pela esposa havia se resumido a um beijo de despedida quando
ela insistia.
O casamento se arrastou assim por cerca de cinco anos até
que depois mais um round de xingamentos e agressões físicas, Maria decidiu ir
embora. Juntou algumas roupas, documentos, pegou os filhos e saiu sem dizer uma
só palavra. Carlos que estava na sala, agarrado à garrafa do seu escocês
preferido, não viu a família sair. Bêbedo, ali mesmo dormiu.
No dia seguinte, quando mais uma vez queria saber onde
estava sua camisa de linho branco, percebeu que algo estava diferente. Seus gritos
não tinham resposta. Procurou por toda a casa e não encontrou a mulher. Foi ao
quarto das crianças e os filhos não estavam lá. Ligou pro celular, mas a esposa
não atendeu. Meia hora depois, vestiu as roupas que encontrou, passou seu
melhor perfume, entrou no carro e foi trabalhar.
Os dias seguiram e a bela mansão da Avenida Lúcio Costa, construída
para dar conforto à família, receber amigos e ostentar o sucesso do Dr. Carlos
Alberto perdeu seu brilho. Apenas os empregados, que chegavam cedo e saiam antes
do patrão voltar, frequentavam a casa.
No natal de 2015 uma ligação
telefônica quebrou o silêncio: era um vizinho dos tempos em que Carlos ainda
morava com mãe que ele não a via desde que deixou sua casa pra morar com a
namorada. Sem meias palavras o homem foi logo falando que dona Joana havia
morrido. Não deu detalhes, disse apenas que foi de infarto e que o corpo seria
enterrado por volta das três da tarde no mesmo cemitério onde aos treze anos de
idade ele tinha sepultado o pai e o irmão mais velho. A ligação caiu e o
silêncio tomou conta da casa.
Quando deu por si, Carlos estava atônito, revirando caixas,
gavetas, pastas de documentos tentando encontrar uma foto da mãe... Aos prantos
gritava pela mulher que não estava ali: Maria, cadê as fotos de mamãe? Cadê as
fotos Maria?.... Maria... Mariahhhhhhh.
De repente, encontrou uma fotografia do aniversário de dez
anos do filho Junior, completados pouco antes da separação. O menino sorrindo em
nada lembrava a criança triste pra quem o pai não tinha tempo. Cenas das brigas
sem motivo, dos gritos, empurrões... da falta de paciência lhe tumultuavam a
cabeça. Carlos estava sem chão, sentindo-se fraco, frágil, infeliz!
Tomou consciência de que não tinha mais ninguém. Estava
sozinho, havia trocado os carinhos dos filhos, os afagos de Maria, o bate-papo
em família pela ilusão de poder que o dinheiro traz. Foi preciso morrer a mãe pro
filho acordar pra vida!